O ESTADO DEMOCRÁTICO EM ESPINOSA E SUA RELAÇÃO COM AS TRANSFORMAÇÕES DEMOCRÁTICAS DE NORBERTO BOBBIO
- Thiago Alencar
- 18 de out. de 2022
- 21 min de leitura
Atualizado: 25 de out. de 2022
RESUMO
O presente artigo trata da relação entre o conceito de democracia sob a ótica de Baruch Espinosa em seu Tratado Político e as transformações democráticas citadas por Noberto Bobbio em seu O Futuro da Democracia. Verifica-se que Espinosa, ao traçar valores alinhados com a escola da Filosofia Política Moderna, previa ideias ainda incipientes acerca das bases democráticas. Bobbio, por sua vez, analisa as problemáticas da contemporaneidade no que se refere à suposta crise democrática. Justifica-se a presente pesquisa pela relevância do tema na atualidade, tendo em vista a reprodução, na sociedade, de ideais antidemocráticos, motivo pelo qual se mostra necessária a análise das raízes da insatisfação que gerou a crise democrática atual. O objetivo geral do trabalho consiste em analisar a relação entre a teoria de Espinosa e Bobbio no que trata das bases teóricas e do efetivo exercício da democracia. Como objetivos específicos, foram estabelecidos os seguintes: i) analisar as bases teóricas e conceituais trazidas por Espinosa em seu Tratado Político, no que tange à origens do poder e à democracia; ii) analisar as transformações da democracia vivenciadas a partir de seu exercício na contemporaneidade, por meio da teoria de Bobbio; e iii) relacionar as bases teóricas de Espinosa com os elementos práticos trazidos por Bobbio. A metodologia adotada é a indutiva, utilizando-se como técnicas de pesquisa a pesquisa bibliográfica por meio de fichamento.
Palavras-chave: Democracia. Teoria política. Transformações democráticas. Filosofia política.
ABSTRACT
This article deals with the relationship between the concept of democracy from the perspective of Baruch Espinosa in his Political Treaty and the democratic transformations cited by Noberto Bobbio in his The Future of Democracy. It appears that Espinosa, when drawing up values aligned with the school of Modern Political Philosophy, foresaw still incipient ideas about democratic bases. Bobbio, for his part, analyzes the problems of contemporary times with regard to the supposed democratic crisis. The present research is justified by the relevance of the topic today, in view of the reproduction, in society, of anti-democratic ideals, reason why it is necessary to analyze the roots of the dissatisfaction that generated the current democratic crisis. The general objective of the work is to analyze the relationship between Espinosa and Bobbio's theory regarding the theoretical bases and the effective exercise of democracy. As specific objectives, the following were established: i) to analyze the theoretical and conceptual bases brought by Espinosa in his Political Treaty, regarding the origins of power and democracy; ii) analyze the transformations of democracy experienced from its exercise in contemporary times, through Bobbio's theory; and iii) relate the theoretical bases of Espinosa with the practical elements brought by Bobbio. The methodology adopted is inductive, using bibliographic research by means of file forms as research techniques.
Keywords: Democracy. Political theory. Democratic transformations. Political philosophy.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o Brasil, bem como outros países em âmbito internacional, vivenciou notável instabilidade nas forças políticas que disputam o poder no contexto democrático. Verificam-se intensas e polarizadas discussões políticas, seja no exercício legítimo ou ilegítimo do direito de livre expressão.
Nesse sentido, ao passo em que se intensificam, de maneira salutar, as discussões acerca de direitos sociais e econômicos, sob aspectos ideológicos diversos, a pluralidade de opiniões frequentemente esbarra em discursos antidemocráticos e, muitas vezes, há real afronta aos valores éticos fundamentais definidores da democracia que vivenciamos desde a Constituição Federal de 1988.
É possível que se questione, portanto, em que aspectos o exercício da democracia, enquanto regime adotado por tantos países ao redor do mundo, tem falhado, ocasionando o que frequentemente se intitula de “crise da democracia”. Ora, o autor Norberto Bobbio, em seu O Futuro da Democracia, afirma que não haveria propriamente uma crise, mas uma transformação da democracia, pois o termo “crise” traz em si a ideia de algo que pode ruir a qualquer momento (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Nesse sentido, o presente trabalho visa compreender como se dão as referidas transformações democráticas, e de que maneira a teoria democrática se mostrou ineficaz ou não factível a partir do momento em que o regime foi colocado em exercício em diversos países e contexto sociais distintos.
Para tal, inicialmente, analisa-se a teoria política de Espinosa, cujo Tratado Político estabelece princípios da ética e da filosofia política aplicáveis à atuação estatal. O filósofo traz a ideia de um direito natural fundado não apenas na razão mas, igualmente, nos afetos humanos, que se refletem no exercício do poder estatal, que se caracterizaria na potência da multidão.
Com base na teoria do filósofo holandês acerca da relação entre o exercício do poder e as bases da democracia estabelecidas pelo pensamento moderno, visa-se passar ao texto de Bobbio em uma tentativa de compreensão das problemáticas verificadas a partir do exercício da democracia, com a finalidade de averiguar se existe relação entre a teoria política de Espinosa e aquela proposta por Bobbio.
Desta forma, busca-se a compreensão das transformações democráticas sob a ótica dos elementos convergentes entre as duas teorias, notadamente aqueles referentes ao acesso ao processo democrático e aos poderes existentes na sociedade, sejam eles de origem aristocrática e oligárquica, sejam eles poderes paralelos ao estatal.
Busca-se verificar, igualmente, se as predições acerca das teorias advinda de escolas e períodos diversos possuem convergências teóricas, ao tempo em que se analisa aprofundadamente as obras dos autores escolhidos.
Por fim, o presente trabalho visa compreender de que forma as transformações democráticas, ainda que possam, em um primeiro momento, indicar suposta crise, apenas reforçam a relevância da democracia enquanto regime que conduz de maneira mais adequada à paz social, por meio do exercício de poder político igualitário mais aproximado e factível possível por parte dos cidadãos.
1. A TEORIA POLÍTICA DE ESPINOSA E OS FUNDAMENTOS NATURALÍSTICOS DA DEMOCRACIA.
O Tratado Político, obra de Espinosa publicada postumamente pela primeira vez em 1677, visa compreender de que maneira se desenvolve a relação entre direito, sociedade, Estado e a natureza humana enquanto homem político.
Segundo o filósofo, existe uma distinção essencial entre os filósofos e os políticos. Aqueles estudam os afetos humanos, considerando-os como vícios cuja culpa é do próprio homem; estes, por sua vez, apoiam-se na prática, nos vícios e nas malícias humanas para desenvolver habilidades e desenvolver teorias (ESPINOSA, 2009, p. 05-06).
Nesse sentido, Espinosa se aproxima da diferenciação clássica entre as áreas da filosofia política e da ciência política, sendo aquela um Dever-Ser da política e das relações do homem político, e esta uma análise do Ser da política e do homem político, analisando suas virtudes e vícios em sociedade.
Por conseguinte, ao conceituar a Ética sob o aspecto de sua teoria, o autor demonstra de que maneira os homens encontram-se submetidos aos seus próprios afetos, ao ponto em que, na convivência social, sentem empatia e compadecimento em relação aos indivíduos que se encontram em situação de inferioridade e padecimento, e deixam-se tomar pela inveja em relação aos que se encontram em melhor situação. Esse cenário resulta na prática de opressões dos homens contra os homens, conflitos estes em que há mais glória no prejuízo do outro do que do benefício próprio (ESPINOSA, 2009, p. 08).
Trata-se de comportamento fundamentado no conceito de Potência, que segundo o filósofo, fundamenta todas as coisas naturais, sendo a própria Potência de Deus. Havendo uma Potência por trás de todas as coisas, notadamente no que trata do comportamento social humano, verifica-se a construção de uma ideia de fundamento máximo do homem em sociedade, um impulso pessoal que, em Espinosa, é a própria Potência de Deus. Nesse sentido, constrói-se a ideia de um Direito Natural, segundo o qual assim define o autor:
[...] por direito de natureza entendo as próprias leis ou regras da natureza segundo as quais todas as coisas são feitas, isto é, a própria potência da natureza, e por isso o direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivíduo, estende-se até onde se estende a sua potência. Consequentemente, aquilo que cada homem faz segundo as leis da sua natureza fá-lo segundo o supremo direito de natureza e tem tanto direito sobre a natureza quanto o valor da sua potência (ESPINOSA, 2009, p. 12).
Mas de que maneira se estruturaria esta potência? Estaria ela unicamente fundada na razão? Segundo Espinosa, caso os homens definissem suas ações levando em conta apenas a razão, de fato, a potência da razão imperaria e, portanto, o direito natural seria fundado única e exclusivamente na razão. Entretanto, os homens, em geral, são conduzidos muito mais pelo desejo e pelos seus afetos que pela razão. Desta forma, ao passo em que faz parte da natureza, o homem possui a potência da natureza, fundando-se tanto na razão quanto nos desejos, que integram as regras da natureza e, portanto, o direito de natureza (ESPINOSA, 2009, p. 12-13).
Fundados na razão e nos afetos, os homens não agem em completa liberdade pois, caso assim o fizessem, agiriam sempre com base na razão, afastando-se dos vícios da natureza humana. Isso pois a liberdade é uma perfeição e uma virtude, motivo pelo qual Deus sempre agiria em perfeita liberdade, pois esta é sua natureza (ESPINOSA, 2009, p. 15).
A natureza humana, no entanto, reside na falibilidade e, ainda assim, os homens se esforçam na manutenção de seu Ser e de sua potência. Nesse contexto, submetem-se às leis, sejam elas dos homens ou da natureza, em uma busca pela conservação dos homens, encontrando-se sempre sob jurisdição:
[...] cada um está sob jurisdição de outrem na medida em que está sob o poder de outrem, e está sob jurisdição de si próprio na medida em que pode repelir toda a força, vingar como lhe parecer um dano que lhe é feito e, de um modo geral, na medida em que pode viver segundo o seu próprio engenho (ESPINOSA, 2009, p. 16-17).
Ressalte-se que, para além da jurisdição de outrem, o indivíduo submetido ao poder estatal e, portanto, cidadão, também se submete à jurisdição da cidade. Não é ele quem decide o que é justo ou injusto, mas o corpo estatal, por meio da representação dos interesses daqueles que o compõem, manifesta a vontade de todos por meio da vontade do estado.
Passada a análise da relação entre direito natural e indivíduo, direciona-se à discussão acerca da multidão. Ora, segundo o filósofo em questão, o “direito que se define pela potência da multidão costuma chamar-se estado” (ESPINOSA, 2009, p. 20). Este teria como função a de estabelecer direitos e limitá-los, sob consenso, com a finalidade de manter coesa a estrutura social em que foi estabelecido.
Nesse sentido, ao definir os momentos de guerra e de paz, ao conceder e interpretar direitos e ao cuidar da “coisa pública”, estamos diante da representação do estado, ou seja, da potência da multidão manifestada por meio do direito. Este poder do estado, no entanto, pode ser exercido de várias formas, e adotando um ponto de vista clássico, Espinosa se alinha ao conceito dos 03 (três) principais formas de exercício do poder estatal, quais sejam a democracia, a aristocracia e a monarquia.
Acerca destes regimes, assim define o filósofo:
Este direito que se define pela potência da multidão costuma chamar-se estado. E detém-no absolutamente quem, por consenso comum, tem a incumbência da república, ou seja, de estatuir, interpretar e abolir direitos, fortificar as urbes, decidir sobre a guerra e a paz, etc. E se esta incumbência pertencer a um conselho que é composto pela multidão comum, então o estado chama-se democracia; mas, se for composto só por alguns eleitos, chamase aristocracia; e se, finalmente, a incumbência da república e, por conseguinte, o estado estiver nas mãos de um só, então chama-se monarquia (ESPINOSA, 2009, p. 20).
Deve-se ressaltar que, ao conceituar a democracia, em momento algum Espinosa estabelece que há uma concessão de poderes ilimitados aos cidadãos. Note-se que há a ideia de um poder que emana do povo, ao mencionar a “potência da multidão”, mas este não é ilimitado pelos argumentos seguintes.
Adentrando-se à relação estabelecida por Espinosa entre o estado natural e o exercício democrático da cidadania como nós a conhecemos atualmente, vislumbra-se que, caso a cidade conceda a um indivíduo a possibilidade de viver de acordo com suas próprias leis individuais, ela abre mão de seu poder e o transfere ao indivíduo.
Por sua vez, ao conceder este poder a dois ou mais indivíduos para que vivam segundo suas próprias regras, divide o estado ao passo em que transfere tal poder a tais indivíduos. Ora, caso a cidade opte por conceder o poder de viver de acordo com suas regras a todos os cidadãos, por sua vez, destrói-se a cidade, voltando todos os indivíduos ao estado natural (ESPINOSA, 2009, p. 26).
Desta forma, a partir da instituição do estado civil, não mais é possível que o homem viva de acordo com suas próprias regras, pois então se estaria diante de um estado natural. Ressalte-se que, tanto no estado natural quanto no civil, o homem busca seus próprios interesses e segue suas próprias regras, de uma maneira ou de outra. Entretanto, a instituição de um estado civil pressupõe que as regras que ditam a vida em sociedade sejam, majoritariamente, as do estado.
Sendo assim, o autor estabelece que o estado se constitui pela potência da multidão e, consequentemente, dá a entender com isso que a titularidade do poder é oriunda do povo. Entretanto, o exercício deste poder, no estado civil, se dá conforme as regras preestabelecidas pelo estado, não havendo concessão de total liberdade ao indivíduo para que este defina as regras pelas quais dita sua própria vida, mas concedendo-se o exercício de direitos ao passo em que estabelece a necessidade de se submeter a uma série de deveres junto ao estado.
2. AS TRANSFORMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA DEMOCRACIA EM BOBBIO.
Superada a temática da Teoria Política de Espinosa e seu ponto de vista acerca do direito natural e da democracia, passa-se à análise da democracia sob a visão contemporânea de Norberto Bobbio. O autor, em seu "O futuro da democracia”, aborda as transformações da democracia na contemporaneidade. Trata-se de texto de grande relevância para se analisar de que maneira este regime de governo tem se desenvolvido.
A Democracia, que se opõe à ideia de autocracia, somente pode ser concebida a partir da ideia de regras que definam indivíduos ou grupos de indivíduos que estejam autorizados a tomar decisões em nome da coletividade, sob procedimento predefinido (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Bobbio afirma que a “crise” democrática reside na ocorrência de promessas não cumpridas, ou seja, ideais democráticos que não se mostraram factíveis no momento em que a democracia foi implantada nas mais diversas sociedades. Com maestria, Bobbio lista 06 (seis) destes ideais “não cumpridos” mais relevantes.
Em primeiro lugar, encontra-se a concepção individualista de sociedade (ideal democrático) versus a incidência do caráter pluralista nas sociedades. Segundo o autor, o surgimento da democracia partiu do princípio de uma sociedade individualista, ou seja, a sociedade política consiste no resultado artificial da vontade dos indivíduos que a compõem (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Segundo o teórico, é possível listar 03 (três) eventos notáveis no que tange ao desenvolvimento de uma concepção individualista da sociedade:
a) o contratualismo do Seiscentos e do Setecentos, que parte da hipótese de que antes da sociedade civil existe o estado de natureza, no qual soberanos são os indivíduos singulares livres e iguais, que entram em acordo entre si para dar vida a um poder comum capaz de cumprir a função de garantir-lhes a vida e a liberdade (bem como a propriedade); b) o nascimento da economia política, vale dizer, de uma análise da sociedade e das relações sociais cujo sujeito é ainda uma vez o indivíduo singular, o homo oeconomicus e não o politikón zôon da tradição, que não é considerado em si mesmo mas apenas como membro de uma comunidade[...]; c) a filosofia utilitarista de Bentham a Mill, para a qual o único critério capaz de fundar uma ética objetivista, e portanto distinguir o bem do mal sem recorrer a conceitos vagos como "natureza" e outros, é o de partir da consideração de estados essencialmente individuais, como o prazer e a dor [...] (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Verifica-se, de antemão, um distanciamento, por parte de Bobbio, da ideia de um direito natural, ao passo em que se aproxima de um ponto de vista utilitarista. Trata-se de concepção que vai de encontro à teoria de Espinosa, retromencionada no presente trabalho. À frente, será abordado de que maneira a teoria dos referidos autores conversa ou diverge entre si.
Ora, a criação de uma doutrina democrática, no que trata da sociedade individualista, pressupõe a existência do homem enquanto indivíduo soberano que, com a finalidade de conviver harmoniosamente em uma sociedade e, ao mesmo tempo, possuir poder de decisão nesta mesma sociedade, abre mão de parcela de sua soberania para dotar o Estado da soberania democrática.
Para tal, inicialmente, a ideia de uma democracia pressupunha a inexistência de “corpos intermediários”. Entretanto, o que se vê na prática de um estado democrático é a constante intermediação de ações. Verifica-se, portanto, que os indivíduos perdem protagonismo no exercício decisório estatal, ao passo em que os grupos se tornam entes de significativo poder, verificando-se não existir mais uma ideia de povo como “unidade ideal”, mas de maneira dividida em grupos cujos interesses se contrapõem (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Desta maneira, pode-se vislumbrar que a sociedade democrática ideal, denominada centrípeta, dá lugar a uma sociedade centrífuga, ou seja, a sociedade com diversos centros de poder. Bobbio, portanto, afirma que a sociedade Rousseauniana ideal, com um centro de poder, é substituída, em sua versão real, por uma sociedade policêntrica ou poliárquica, estruturada em diversos polos de poder e, portanto, caracterizando-se como pluralista (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Passa-se, portanto, ao segundo ideal democrático não cumprido na sociedade real, qual seja a “revanche de interesses”. Nos alicerces teóricos democráticos, fundam-se os princípios da vedação do mandato imperativo e o da representação política. Tais princípios visam a construção de uma representatividade democrática que não reflita jogos de interesses, mas a vontade real do povo.
Entretanto, o que se verifica é o desrespeito constante a estes princípios. Primeiramente, no que trata da vedação do mandato imperativo, Bobbio chama a atenção para a disciplina partidária. Parlamentares, em geral, são vinculados à orientação e ao direcionamento dado ao partido que integram, o que já macularia o referido princípio (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
No que trata do princípio da representação política, por sua vez, o autor chama a atenção para situações fáticas em que o Estado assume uma postura neocorporativa (estrutura vislumbrada por Bobbio na Europa), em que se estabelece uma relação triangular entre grupos de interesses contrapostos e o Estado enquanto mediador, afastando-se de sua postura soberana e submetendo-se aos duelos de interesses sociais e políticos (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Outra das “promessas” não cumpridas da democracia é a derrota das oligarquias. Na concepção clássica de democracia, cunhada pelos teóricos da filosofia política do século XIX, havia a ideia de que, com a devolução do poder soberano ao povo, as oligarquias não mais existiriam. Entretanto, o que se verifica, na atualidade, não é a ausência da elite, mas a presença de diversas elites que concorrem entre si em busca do voto popular (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Bobbio menciona, igualmente, a impossibilidade de ocupação, por parte do processo democrático, de todos os espaços. Utilizando-se do exemplo do sufrágio, afirma que, ao verificarmos a ampliação do número de votantes em um determinado local, deve-se perguntar não apenas quem vota, mas também “onde se vota?”:
[...] quando se quer saber se houve um desenvolvimento da democracia num dado país o certo é procurar perceber se aumentou não o número dos que têm o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas os espaços nos quais podem exercer este direito (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Verifica-se, portanto, a necessidade de análise do efetivo acesso às decisões estatais, bem como a verificação da real liberdade no poder decisório individual. Para além da ocupação do espaço democrático e da abrangência da capacidade decisória, há a necessidade de respeito ao exercício dos direitos de liberdade na mesma intensidade com que se deve respeitar o exercício dos direitos políticos.
Outro dos elementos que a democracia ideal visava combater e, na prática, não vislumbrou ser possível, é a existência de poderes invisíveis na sociedade. Este seria o chamado “duplo estado”, que desenvolve suas ações de maneira encoberta, sem a devida publicidade.
A publicidade dos atos de um estado possuem uma dupla função de controle, possibilitando ao cidadão o conhecimento das ações dos detentores do poder e, ao mesmo tempo, controlando-se os atos sob o aspecto da licitude ou ilicitude, eis que encontram-se públicos a todos os cidadãos (BOBBIO, 1997, documento eletrônico). Entretanto, verifica-se que há diversos poderes invisíveis que interferem na ação estatal e no exercício democrático, efetivos poderes paralelos em atuação junto aos estados.
Outra das “promessas” democráticas não atendidas é a educação dos cidadãos, ou seja, a educação para o exercício da cidadania. O direito público do século XIX trouxe consigo a ideia de que a educação democrática se dá com a prática da democracia. Entretanto, o que se verifica na atualidade é uma verdadeira apatia política por parte de diversos grupos de cidadãos, que não se interessam nos rumos políticos da sociedade em que estão inseridos.
No que trata do ideal do governo de técnicos, o sexto e último dos ideais clássicos do desenvolvimento democrático, se trata de um ideal que já nasce impossível de ser atingido. Isso ocorre pois o referido valor é incompatível com o exercício do poder por todos, ao passo em que direciona o poder apenas aos técnicos:
Tecnocracia e democracia são antitéticas: se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que venha a ser o cidadão qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrário, pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Desta maneira, seria impossível conceber uma sociedade em que houvesse exercício de poder por todos os cidadãos e, ao mesmo tempo, este exercício fosse completamente qualificado pelo saber técnico. Isso ocorre pois não é possível que todos os cidadãos possuam todo o saber técnico acerca de todos os assuntos que integram a sociedade.
Os referidos elementos, portanto, contribuem negativamente para a chamada crise da democracia, eis que a quebra dos ideais formulados pelos teóricos clássicos da democracia geram desconfiança por parte dos cidadãos no desempenho das atividades democráticas. Em face disso, poder-se-ia questionar se haveria futuro para a democracia como a conhecemos.
Segundo Bobbio, verifica-se que, mesmo nos países em que a democracia encontra-se mais distante do modelo dito como ideal, ainda assim, o referido modelo não se confunde nem se compara com um modelo autocrático ou totalitário. Ainda que se possa vislumbrar uma espécie de crise fundada na concepção ideal de democracia que a sociedade ocidental definiu para si, não houve redução nos direitos fundamentais mínimos garantidos no seio dos regimes democráticos, comprovando que, dentro de seus limites fáticos, a democracia não resultou em um insucesso:
O conteúdo mínimo do estado democrático não encolheu: garantia dos principais direitos de liberdade, existência de vários partidos em concorrência entre si, eleições periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas (nas democracias consociativas ou no sistema neocorporativo) ou tomadas com base no princípio da maioria, e de qualquer modo sempre após um livre debate entre as partes ou entre os aliados de uma coalizão de governo. Existem democracias mais sólidas e menos sólidas, mais invulneráveis e mais vulneráveis; existem diversos graus de aproximação com o modelo ideal, mas mesmo a democracia mais distante do modelo não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático e menos ainda com um totalitário (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
Desta maneira, verifica-se que, ainda que os elementos estruturantes do processo democrático, muitas vezes, não corresponda às teorias clássicas, o núcleo essencial do regime da democracia permanece bem estruturado. As críticas tecidas pelos cidadãos e pelos teóricos da política, plenamente cabíveis para o aprimoramento do regime, servem essencialmente para repensarmos as estruturas da democracia, aprimorando-a, e não para que esta seja extinta ou substituída por outro regime.
3. O ESTADO DEMOCRÁTICO EM ESPINOSA E SUA RELAÇÃO COM AS TRANSFORMAÇÕES DEMOCRÁTICAS.
Conforme anteriormente explicitado, Espinosa é claro ao dizer que ao homem é impossível guiar-se apenas pela razão, motivo pelo qual, muitas vezes, se perde em seus afetos. Entretanto, a potência humana, que em Espinosa possui raízes teístas e jusnaturalistas, constitui o estado na medida em que se combina às potências de outrem. Ora, se o homem não se guia unicamente pela razão, surge a necessidade de um estado civil, eis que, em face de uma sociedade de indivíduos plurais, não há a possibilidade de se conceder poder de decisão a todos para que vivam de acordo com suas próprias regras.
O estado assim concebido, quando submetido ao regime democrático, segundo Espinosa, pode ser regido sob diversos gêneros de democracia. A este filósofo, no entanto, importa apenas um dos gêneros, qual seja aquele em que todos os cidadãos, assim compreendidos como aqueles que são submetidos a direitos e deveres no ordenamento jurídico estatal, possam ter o direito de votar e o direito de ocupar cargos estatais (ESPINOSA, 2009, p. 138).
O referido cidadão, segundo o autor, seria aquele que pauta suas ações de maneira honesta, de acordo com os princípios éticos e o ordenamento jurídico ao qual está submetido. Ressalte-se que, reproduzindo pensamento vigente à época, Espinosa exclui da categoria de cidadãos aqueles ditos como incapazes na sociedade de então, o que não é relevante para a discussão acerca de sua teoria democrática para os fins deste trabalho.
Sendo assim, a efetiva distinção entre a democracia e a aristocracia, para o filósofo holandês, residiria na possibilidade de acesso aos cargos do estado por parte de todos os cidadãos, não se limitando o poder nas mãos dos chamados “patrícios” (ESPINOSA, 2009, p. 137).
Trata-se de visão que se alinha notadamente com 02 (dois) valores fundamentais da democracia elencados por Bobbio, sendo ambos apontados como ideais que, na prática, não tiveram o sucesso esperado: a quebra das oligarquias e o poder invisível.
Ora, no que trata das oligarquias, há total relação entre estas e o poder aristocrático, o exercício do poder única e exclusivamente daqueles que possuem direito ao acesso aos cargos do estado em virtude de nascerem em famílias que possuem poder. De fato, Espinosa afirma que os direitos políticos em uma democracia devem ser exercidos por todos que não estejam com seus direitos políticos suspensos.
Entretanto, conforme anteriormente mencionado, as elites seguem detentoras de poder político mas, na prática, integram vários núcleos de poder que buscam o voto das maiorias para a manutenção do poder político e econômico. Por sua vez, no que trata dos poderes invisíveis, Bobbio menciona, para além da relevância da publicidade em uma sociedade democrática, a existência de um poder invisível paralelo.
Nesse aspecto, utilizando-se do exemplo do que ocorre na Itália, seu país de origem, Bobbio afirma o que segue:
Diferentemente da relação entre democracia e poder oligárquico, a respeito da qual a literatura é riquíssima, o tema do poder invisível foi até agora muito pouco explorado (inclusive porque escapa das técnicas de pesquisa adotadas habitualmente pelos sociólogos, tais como entrevistas, levantamentos de opinião, etc.). Talvez eu esteja particularmente influenciado por aquilo que acontece na Itália, onde a presença do poder invisível (máfia, camorra, lojas maçônicas anômalas, serviços secretos incontroláveis e acobertadores dos subversivos que deveriam combater) é, permitam-me o jogo de palavras, visibilíssima (BOBBIO, 1997, documento eletrônico).
No sentido acima mencionado, pode-se dizer que o combate aos poderes invisíveis, para além da estruturação de um sistema de publicidade dos atos estatais, compreende também a tentativa de extinção dos poderes paralelos, de um estado duplo. No contexto brasileiro, por exemplo, poder-se-ia mencionar a existência das milícias, dos poderes paralelos exercidos pelo tráfico ou de famílias que dominam a elite política de determinadas regiões.
Todos estes são poderes paralelos que interferem no funcionamento pleno da democracia, relacionando-se com o ideal de quebra das oligarquias e dos poderes invisíveis, mencionados por Bobbio, e da adoção do regime democrático em contrariedade ao regime aristocrático, conforme Espinosa.
Acerca da problemática da impossibilidade de ocupação dos espaços democráticos, mencionada anteriormente neste trabalho no que trata da teoria de Bobbio, propõe-se um paralelo com os limites ao exercício da democracia por parte daqueles que, segundo Espinosa, não integrariam o corpo dos ditos “cidadãos”.
Segundo este teórico, estariam excluídos de tal categoria as mulheres, os servos, os filhos e os pupilos, pois estes estariam submetidos ao poder dos homens e dos senhores (ESPINOSA, 2009, p. 139). Trata-se, obviamente, de ideia alinhada aos ditames sociais da época, marcada por estruturas sociais mais rígidas e por preconceitos estruturais.
Entretanto, cumpre questionar: o exercício do poder democrático atinge a todos os cidadãos, em todas as localidades e em todos os estratos sociais? Conforme já mencionamos anteriormente, Bobbio realiza perguntas fundamentais nesse sentido, no que trata do sufrágio: quem vota e onde se vota? A ampliação do número de eleitores e a amplitude das discussões políticas essenciais ao funcionamento da sociedade alcançam a todos ou apenas a uma parcela geograficamente delimitada da população?
As respostas a estas perguntas relacionam-se com aspectos socioeconômicos de grande importância para o panorama democrático atual. Mas para além das possíveis respostas, propõe-se a seguinte reflexão: a ampliação do poder de voto ainda não pressupõe o exercício livre do fazer democrático. Muito se evoluiu no que trata da concessão de direitos políticos, mas ainda há muito a evoluir no que trata do acesso às discussões políticas por grupos socialmente afetados que necessitam da maior atuação estatal.
Dito isso, verifica-se haver densa relação entre os aspectos teóricos da estruturação da democracia no texto de Espinosa ora estudado e as conclusões da prática democrática que levou à suposta “crise” democrática, chamada por Bobbio, com maestria, de transformação democrática.
Entretanto, é de grande importância ressaltar que, no campo das inconsistências entre os referidos teóricos, Bobbio se mostra contrário à ideia de um direito natural, ao passo em que Espinosa funda toda sua teoria nos aspectos jusnaturalistas. Desta forma, limita-se o referido paralelo aos aspectos citados de convergência das teorias, focando-se nos aspectos racionalistas dos referidos teóricos, o que, metodologicamente os aproxima.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio do presente trabalho, foi possível analisar, de maneira aprofundada, a obra “Tratado Político”, do autor Baruch de Espinosa, estudando-se de que maneira este teórico estruturou sua teoria vinculada à ética e à filosofia política moderna.
Na referida obra, Espinosa leciona acerca da potência humana, vinculada à ideia de um estado de natureza vinculado diretamente a uma figura divina, da qual se extrairia um direito natural aplicável a toda a sociedade. Oriunda da junção das potências individuais, surge a ideia de uma “potência de multidão”, da qual derivaria o poder do estado.
Conforme mencionado no corpo do trabalho, segundo o autor, tendo em vista a impossibilidade de manutenção de uma sociedade em que todos os indivíduos vivem de acordo com suas próprias convicções, foi necessária a estruturação de um estado civil em oposição ao estado natural, sendo aquele caracterizado pelo exercício de poder pelos indivíduos por meio da concessão de direitos mediante submissão a deveres, sempre exercidos de maneira honesta e alinhada à ética.
Nesse sentido, a democracia surge como regime de governo em que os indivíduos se submetem à “jurisdição de si próprios e vivem honestamente” (ESPINOSA, 2009, p. 139). Após esta análise da obra de Espinosa, passou-se à obra do teórico Noberto Bobbio, intitulada “O futuro da democracia”.
No referido texto, o autor esclarece que a democracia, quando teoricamente formulada, trouxe em seu bojo ideais que surgiram como verdadeiras “promessas”, notadamente no que trata das teorias filosóficas do século XIX. Entretanto, com o exercício real do regime, verificou-se uma série de inconsistências no cumprimento das mencionadas “promessas”, motivo pelo qual surgiu a chamada “crise da democracia”, que Bobbio opta por intitular “transformação da democracia”.
Traçou-se, portanto, um paralelo entre as duas teorias, com a finalidade de se analisar de que maneira se aproximam naquilo que propõem. Espinosa, jusnaturalista e racionalista, traz aspectos teóricos da democracia, eis que viveu em um período em que havia fervorosa conjectura acerca deste regime. Bobbio, por sua vez, ainda que racionalista, rejeita o jusnaturalismo, mas menciona uma série de “promessas” democráticas que, conforme demonstrado, já estavam presentes na teoria de Espinosa.
É possível verificar, portanto, que as transformações sofridas pela democracia, defendidas por Bobbio em sua obra, são relacionadas notadamente com estruturas de poder, sejam visíveis ou invisíveis, e à dificuldade de acesso ao exercício democrático e à educação para a cidadania. Estes pontos, no entanto, já eram abordados por Espinosa, o que demonstra que o hiato existente entre a teoria e a prática democráticas se estendem nos séculos.
No entanto, cumpre ressaltar que, conforme Bobbio afirma em seu tratado acerca do caráter democrático de ser “o governo das leis por excelência” (BOBBIO, 1997, documento eletrônico), ideia que se relaciona ao estado civil de Espinosa. Nesse sentido, cabe ao regime democrático a manutenção de suas bases e princípios fundamentais, para que não se perca no contexto das transformações vivenciadas na atualidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AURÉLIO, Diogo Pires. Espinosa, Marx e a Democracia. Revista Estudos Políticos: a publicação eletrônica semestral do Laboratório de Estudos Hum(e)anos (UFF) e do Núcleo de Estudos em Teoria Política (UFRJ). Rio de Janeiro, Vol.5 | N.2, pp. 427 – 443, dezembro 2014. Disponível em: http://revistaestudospoliticos.com/
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
BRAGA, Luiz Carlos Montans. Uma Tese Radical: Espinosa e a Democracia. Cadernos Espinosanos, [S. l.], n. 40, p. 195 - 205, 2019. DOI: 10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2019.159457. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/espinosanos/article/view/159457. Acesso em: 13 fev. 2021.
ESPINOSA, Baruch de. Tratado Político. 1. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
Como citar o artigo:
PEREIRA, Thiago Alencar Alves. O Estado Democrático em Espinosa e sua relação com as Transformações Democráticas de Norberto Bobbio. In: III Encontro Virtual do CONPEDI, 2021. Teorias da Democracia, Direitos Políticos, Movimentos Sociais e Filosofia do Estado II. Florianópolis: CONPEDI, 2021. p. 85-100.
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