O contrato administrativo e as obrigações futuras: diálogo entre os direitos administrativo e civil
- Thiago Alencar
- 6 de jul. de 2023
- 7 min de leitura
Thiago Alencar Alves Pereira[1]
1. Introdução.
O objetivo geral deste estudo é compreender a expressão “obrigações futuras” no âmbito dos contratos públicos - uma vez que o direito obrigacional é tema afeto ao direito civil - e como o operador do direito deve nortear sua atuação para aplicá-la de forma objetiva, clara e eficiente no dia a dia da administração pública.
Para melhor organizar o raciocínio, o objetivo específico foi centrado na verificação doutrinária e jurisprudencial, de modo a permitir ao leitor uma compreensão menos subjetiva e mais segura.
A conclusão, finalmente, é que o direito civil fornece elementos conceituais importantes ao direito civil, traduzindo as obrigações futuras naquelas que se concretizam em prazo superior a trinta dias, com entrega parcelada e em uma relação jurídica transitória que se propõe a existir para o futuro, incluindo a assistência técnica.
2. Teoria Geral das Obrigações e o auxílio a Lei de Licitações e Contratos Públicos: o vocábulo “obrigação futura“.
A lei de licitações e contratos públicos, como norma geral de contratação pública, visa assegurar a isonomia de condições a todos os concorrentes, impondo o texto constitucional a existência de cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, sempre mantendo as condições efetivas da proposta, bem como as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Todas as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, com as ressalvas que a lei permitir, igualmente autorizadas pelo constituinte.
Isso significa que alguns casos poderão dispensar as modalidades de licitação, mas devem, sem exceção, possuir procedimento administrativo que garanta igualdade, trasparaência, impessoalidade.
No fim do procedimento licitatório a regra é que se estabeleça um contrato que, inclusive, constitui um dos anexos ao edital convocatório.
Todavia, tanto a Lei Nacional nº 8.666/1993 quanto a nº 14.133/2021 permitem a faculdade do intrumento contratual em algumas hipóteses, respectivamente:
Art. 62. O instrumento de contrato é obrigatório nos casos de concorrência e de tomada de preços, bem como nas dispensas e inexigibilidades cujos preços estejam compreendidos nos limites destas duas modalidades de licitação, e facultativo nos demais em que a Administração puder substituí-lo por outros instrumentos hábeis, tais como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço.
Art. 95. O instrumento de contrato é obrigatório, salvo nas seguintes hipóteses, em que a Administração poderá substituí-lo por outro instrumento hábil, como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço:
I - dispensa de licitação em razão de valor;
II - compras com entrega imediata e integral dos bens adquiridos e dos quais não resultem obrigações futuras, inclusive quanto a assistência técnica, independentemente de seu valor.
§ 1º Às hipóteses de substituição do instrumento de contrato, aplica-se, no que couber, o disposto no art. 92 desta Lei.
§ 2º É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras ou o de prestação de serviços de pronto pagamento, assim entendidos aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).
A leitura dos artigos permitir entender que é necessário formalizar termo de contrato nos casos de compras que resultem em obrigações futuras, inclusive assistência técnica.
Aqui vale ressaltar que não devem ser consideradas obrigações futuras as garantias legais e complementares referenciadas pelos artigos 24 e 50 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), pois a garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor, já que a garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante termo escrito.[2]
Marçal Justen Filho explica que
O caput e o §4º autorizam a substituição do “termo de contrato” por outras modalidades instrumentais em certas hipóteses. A previsão legal pode ser reconduzida à previsão do art. 15, III. As compras da Administração Pública deverão (“sempre que possível”) submeter-se às condições de aquisição praticadas no setor privado. A Lei acolhe o informalismo do Direito Comercial, sempre que inexistir riscos de maior dimensão para os interesses fundamentais. A Lei refere-se à hipótese de ausência de obrigações futuras (inclusive envolvendo assistência técnica) para o contratado. Obviamente, a regra legal não se refere à previsão de garantia pelos vícios ocultos, evicção etc. Essas decorrências são automáticas e dispensam expressa previsão contratual. Logo, a omissão do instrumento contratual não acarretaria a inaplicação das regras legais.[3]
A grande dificuldade no dia a dia da administração pública é entender os contornos da expressão “obrigações futuras“. As perguntas de servidores gravitam entre saber se garantia e assistência técnica são ou não obrigação de trato sucessivo e que se estendenderão no futuro, e quais hipóteses deverão ser tratadas como “presente“ ou “futuras“.
Primeiro, destaca-se que o direito das obrigações está disciplinado no Código Civil, onde se pode extrair alguns ensinamentos valiosos sobre o significado do vocábulo “orbigações“.
Segundo. Sobre o sentido do vocábulo, Carlos Roberto gonçalves leciona que o vocábulo “obrigação” comporta vários sentidos. Na sua mais larga acepção, exprime qualquer espécie de vínculo ou de sujeição da pessoa, seja no campo religioso, moral ou jurídico. Em todos eles, o conceito de obrigação é, na essência, o mesmo: a submissão a uma regra de conduta, cuja autoridade é reconhecida ou forçosamente se impõe.[4]
Washington de Barros Monteiro diz que “obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio”.[5]
No mesmo caminho, Fábio Ulhoa Coelho ensina que “obrigação é o vínculo entre duas partes juridicamente qualificado no sentido de uma delas (o sujeito ou sujeitos ativos) titularizar o direito de receber da outra (o sujeito ou sujeitos passivos) uma prestação”.[6]
De partida, podemos dizer que a obrigação futura tratada nas leis de licitação e contratos públicos é o vínculo entre a Administração Pública e o licitante vencedor, onde este deve dar ou restituir, entregar, fazer (ou não fazer) algo aquele no futuro, diga-se, durante a relação contratual.
Terceiro. Quarto. Para além dos conceitos tradicionais, Nelson Rosenvald chama a atenção para como deve ser enfrentada a “obrigação“ atualmente:
A obrigação deve ser vista como uma relação complexa, formada por um conjunto de direitos, obrigações e situações jurídicas, compreendendo uma série de deveres de prestação, direitos formativos e outras situações jurídicas. A obrigação é tida como um processo - uma série de atos relacionados entre si -, que desde o início se encaminha a uma finalidade: a satisfação do interesse na prestação. Hodiernamente, não mais prevalece o status formal das partes, mas a finalidade à qual se dirige a relação dinâmica. Para além da perspectiva tradicional de subordinação do devedor ao credor existe o bem comum da relação obrigacional, voltado para o adimplemento, da forma mais satisfativa ao credor e menos onerosa ao devedor. O bem comum na relação obrigacional traduz a solidariedade mediante a cooperação dos indivíduos para a satisfação dos interesses patrimoniaís recíprocos, sem comprometimento dos direitos da personalidade e da dignidade do credor e devedor.[7]
A atenção reclamada se faz justa e concilia com a Lei Nacional nº 14.133/2021 que traz como objetivo assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública.
Quarto. A exceção contratual previstas nas leis de licitação e contratos públicos é justificável, já que o contrato exaurir-se-á em um único ato, não havendo que se faalr em direitos e deveres futuros. O Tribunal de Contas da União (TCU), inclusive, é recorrente neste entendimento, como se vê do AC-0589-03/10-1, AC-0423-05/11-P, AC-1102-15/07-2 e AC-1219-13/07-1, quando a Corte enunicou que “o termo de contrato deve ser formalizado sempre que houver obrigações futuras decorrentes do fornecimento de bens e serviços, independentemente da modalidade de licitação“.
O Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso também já disse que as obrigações futuras devem ser entendidas como aquelas em que: (a) a tradição do objeto não é imediata, em razão da tratativa; b) há parcelamento da entrega (fracionamento), tais como nos casos de contratação de apólice de seguros, de financiamento e de locação, bem como de prestação de serviços de energia elétrica; c) há previsão de assistência técnica, independentemente de haver entrega imediata.[8]
Pontua-se que a assistência técnica, que impõe a formalização de termo de contrato, deve ser entendida como aquela que reclama detalhamento maior dos termos do comprometimento do fornecedor ou fabricante para sustentar a reposição de peças ou a execução de serviços especializados de suporte, não se caracterizando assistência técnica a garantia de execução do contrato (caução, seguro garantia, fiança bancária)[9], a garantia legal extracontratual[10] e a garantia contratual complementar à legal[11].
3. Considerações finais.
As relações no direito público são, via de regra, formais, impondo a lei intrumento contratual.
Essa exigência, por vezes, torna a admistração pública burocrática, lenta e inservível a velocidade exigida pela sociedade e setor econômico privado.
Todavia, o constituinte foi feliz ao autorizar exceções aos procedimentos licitatórios e contratuais, permitindo a substituição do contrato por outros instrumentos hábeis, tais como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço, mais céleres e simples.
De toda forma, os vócabulos abertos, como a expressão “obrigações futuras“, vista alhures, impõe dificuldades e perigos a quem se aventura na gestão pública, devendo tomar as cautelas de ouvir a doutrina e a jurisprudência para evitar sanções.
Alfim, a busca pela pacificação de entendimentos é essencial para a segurança jurídica e a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, evitará tipificação de erro grosseiro, a admitir a desconsideração de responsabilidade do agente público.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COLEHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 2.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado, volume I. São Paulo: Saraiva, 2011.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. RT. São Paulo. 16ª Ed. rev. atual. e ampl., 2014.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2007, v.4, p.8.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa.fé. São Paulo: Saraiva, 2005.
[1] Procurador do Estado de Rondônia. Professor. Advogado. Doutorando e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet). Graduado pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Técnico em contabilidade (Socepp). Membro do Instituto Rondoniense de Direito Administrativo (IRDA) e do Instituto de Direito Processual de Rondônia (IDPR). Autor do livro "Noções de regime próprio de previdência social: Uma Análise das Teses Jurídicas na Evolução Constitucional", site www.pthiagoalencar.com, Instagram e twitter: pthiagoalencar. site www.pthiagoalencar.com, Instagram e twitter: pthiagoalencar. CV lattes: http://lattes.cnpq.br/5102172909980935. Email: thiagoalencar@pge.ro.gov.br. Mais sobre o autor em https://linkr.bio/thiagoalencar. [2] O termo de garantia ou equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada em que consiste a mesma garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do consumidor, devendo ser-lhe entregue, devidamente preenchido pelo fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado de manual de instrução, de instalação e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações. (art. 50, §único, CDC) [3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. RT. São Paulo. 16ª Ed. rev. atual. e ampl., 2014. p. 530. [4] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil esquematizado, volume I. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 427. [5] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2007, v.4, p.8. [6] COLEHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 2., p. 5. [7] ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa.fé. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 204 [8] TCE-MT, Acórdão nº 414/2017 – TP, conselheiro interino Luiz Carlos Pereira. [9] Art. 56 da Lei Federal nº. 8.666/1993. [10] Art. 24 do Código de Defesa do Consumidor. [11] Art. 50 do Código de Defesa do Consumidor.

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